quinta-feira, fevereiro 23, 2012

cantiga de rio

i
purus
em teu leito viajante
de poeta vou brincar
veia torta em mim gigante
faz meu coração remar

ii
praias virgens de encanto
onde põem os tracajás
maguaris de voo razante
acompanham meu pensar
quem vem lá?
é um cavaleiro andante
ou carteiro de abas*?
cortejo de boto em teu manto
nija, nija, nija!**

iii
faróis de areia
orientando rumos
afogando medos
das canoas, o aprumo
das mulheres, os segredos

iv
esquinas brancas
para quem te sobe
em deslumbramento
abraça-me tu que és nobre
faz-me te ver a cada momento

v
dentes da noite
estampam gargalhadas
no ruído das águas
e no silêncio das madrugadas
não aportam mágoas

vi
por que o inverno é triste?
não há riso em boca cerrada
nem brilho nos olhos em pranto
protesto à prole depredada
manifesto sem canto

vii
escalar-te
é declarar-se pronto
numa trajetória
que subtrai forças
que sovina planos

viii
é estar disposto a recomeçar
apagando datas
apanhando chuvas
nem promessa de santo te convence
nem o próprio santo te engana

ix
ritmo absoluto
a quem te manja
relativo a quem te luta
és o soberano acidente

x
imprevisíveis teus durantes
longas abreviaturas
a estender retiros
cálidos os teus lençóis

xi
fincar olhos em bandos de periquitos
imaginá-los insurgentes
nas ruas da impaciência
nos templos da angústia

xii
quem vem lá?
na calma de quem te conhece as curvas
no riso de quem te desce
tão íntimo com o repique
tão amigo das praias
teu coração é caminho
teu destino é dobra
teu infinito é próximo

xiii
senóide de verdes cristas
esperma de nuas margens
espelhas em branca tez
os filhos que procriastes
e os astros do firmamento.
 
                                                   * palavra da língua kulina; pronuncia-se “abás” e quer dizer “peixes”.
                                                   ** expressão da língua kulina; pronuncia-se “nirrá” e quer dizer “olá !”

highlander


com mapa desfeito e sem razão varemos
de mochila vazia e olhos de vidro vamos
sem coragem de ter medo fracassaremos
sem perder o caminho não aguentamos.

canção do esbulho

em minha terra tem poetas
que nem frutas no mercado
sonham com as moscas
e acordam no tablado

onde vivo a arte é clandestina
e mesmo assim viceja
transgride o verniz dos gabinetes
onde o Estado sobeja

por cá também há rios,
matas, mitos, queimadas
ladrões de colarinho,
almas esbandalhadas

tem câmaras, assembleias,
palácios onde vivem catrepeiros
aqui ainda se faz tocaia
a mando de fazendeiros

em minha terra tem miséria
para um magote de vagabundos sustentar
permita deus que todos morram
para que eu possa ficar

pois em minha terra ainda há poetas
e enquanto houver arte e magia
nos será permitido sonhar.

quanta

estar e não permanecer
é nosso jeito quanta de se amar
de se sentir e de se jogar inteiro
e se perder na curva do tempo
fazendo poesia com a própria vida.

dois

amar não é uma questão
e se o for
é sem eira nem beira
                                       sempre assim
                                       um tanto riso
                                       outro lamento
de não estar junto
no barco
na noite
na areia
                                        as vozes?
                                        perdidas em ecos,
                                        abismos,
                                        silêncios
                                        e ondas 
                                        
amar não é uma questão
e se o for
é sem eira
nem beira
sempre assim
um tanto vida
outro morte.

síndrome

assombração
do lado de fora do pensamento
nem um momento de rendição
agonizo nas ruas que não são minhas
deliro em minhas luas
invento a morte de mão certa
tem música na contramão
na festa das mil e seiscentas cabeças de olhos em fogo
não virei pedra
nem sequer dancei.

requiem

                                        à sedso, afilhado kulina

é não saber o que dizer
não é (- ah, se fosse!) um pesadelo
facada n’alma

de onde esse rio,
que rola pedras
em corrida ligeira
alagando a mata?

onde o cemitério sagrado
em que deuses conjuram estrumes
louvam rebentos
semeam rochas sobre lágrimas
e alegram meninos?

repique

buzinas não há
nem hora de chegar
sem essa de ponto
- floresta, até quando ficarás?
escravizam teus filhos
queimam tua roupa
esterilizam teu ventre e a esperança
de o grão-índio noutras terras germinar
mas que venha toda a gente
em grande corrente
no mais forte repique
no mais cerrado pique
se amazonar.

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

solitude

noite sem sono
comendo estrelas
morte de vela
em olhos de papel
meu pensamento
pervade cristais
noite sem sono
bebendo a borra daquela
que não suporta a carga
de ser a um só tempo
luz e espelho de minha nostalgia
noite em chamas
moendo na fábrica de um mosquiteiro sem mim.

segunda-feira, fevereiro 13, 2012

elegia

                                   à Roberto, Lori, Pama e Bino


chuva na floresta
minh’alma é rio
meu sentido
é mais do que vejo
melodia de elementos
a bailar a verde dama
como se eu ali estivesse
com os passarinhos brincando
beijando o véu barrento
cantando
voando
Ah...que venha esse grito
sim, a felicidade é mesmo uma arma quente
Ahggahaghggggaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!
Ah...se não tivesse aprendido a pensar
queria gozar este momento
sem a marca das horas
queria descrer no desmate
para não obviar o empate
nossa sina: vida e morte
nossa luta: matar a morte
atequando atequandaremos as moto-serras
e os índios e os seringueiros e as diferenças?
a aura dos sentimentos
é indevassável
nela não há ouro nem madeira
ninguém marretará nossa alegria
ou grilará nossa vocação à vida
ou secará as vertentes de lágrimas
chegaremos à terra-sem-males
pelo varadouro escorregadio de sangue
repleto de árvores agonizando sem raízes
mas, a tempo:
a cantiga do vento é eterna.

ensaio

                              à merleau ponty,

cézanne inquieto
para pintar uma natureza morta
em cem sessões de trabalho se detinha
maçã que desborda
mesa que deforma
pão de três dias
cocô de passarinho
de quantas precisaremos
para reinstituir o homem e sua cidade?

antibiografia

nasci
com pitágoras no nariz
arquimedes nos braços
e os carinhos da mamãe

inda menino
conheci newton no primeiro cascudo
pelé nas primeiras peladas
e a marginalização nos primeiros amigos

adolescente
descobri darwin no corpo
freud no sexo
a fome no bairro
e o camburão no bar da esquina

no início da maturidade
cumprimentei marx em minha história
e cristo sendo expulso das igrejas

hoje
sou latino-americano
globalizado
conectado
blogado
ainda sem nada saber
dos meus antepassados.

reverso

sempre lembrarei
que o poeta
não se prende aos limites do verso
- o grito o extrapola!
e que a poesia não morre com a rima
nem com as palavras congela
poeta-poesia-poço-profundo.

madija *

escrevem seu mundo
com harmonia de remos
e ronco de máquinas
jari!**

tecem um destino
cantando e dançando
sob a estrada do sol
onde varam a lua e a grande estrela e a vida

na melodia do tempo
e no ritmo dos caminhos da floresta
desenhados com diapasão de ferro
com a maestria de mãos tão calejadas quão delicadas

escrevem seu mundo
no estrondar de espingardas
e no silêncio das flechas voadoras

diante das crianças
e de uma multidão de totore***
prenhes de música
jari!


* autodenominação da nação indígena kulina, localizada nas bacias dos rios juruá, envira e purus na amazônia; pronuncia-se “madirrá” e quer dizer “gente”.
** expressão da língua kulina; pronuncia-se “rrarê” e quer dizer “eia !”
*** pequena flauta da cultura material kulina; pronuncia-se “totoré”.

conatus

nossas vidas correm mundo
com a força de formigas
e luz de vagalumes
nossos rastros são profundos
rios secos
velhos moços
debutantes
vagabundos
nossa herança é o futuro
que já se prepara
ventre-presente
destino sem muro.

sexta-feira, fevereiro 10, 2012

guarani

rumo à toa
em peito de leoa
qual onda de mar sem horizonte
fora da trilha
me dou um talismã
firme ao infinito eu vou
como os cavalos da planície
sigo em busca de glória
ao encontro da terra-sem-males
não antes sem levar um cântaro de lágrimas
para que possa conjurar sua fonte maldita
rumo com pesar
mas fortalecido com os acordes de uma velha rabeca
apanhei-a numa clareira
onde homens e mulheres
esquecidos de suas cantigas
a abandonaram
com o cântaro e a rabeca
desembarcarei guerreiro
vitorioso no novo amanhecer
plantarei uma música
e a regarei com o sangue
de nossos antepassados
e sua beleza não será frágil
e sua força não admitirá correntes
ninguém chorará.

tempo

era uma vez
um pingo d’água
que no apogeu de sua forma
acabou-se ao chão.

mater

como a queda de uma grande árvore
a surpreender meus ouvidos quietos
ou o encontro de um oásis de cana
a adoçar meu cansaço em infinita caminhada
assim foi a lembrança que espocou meus olhos
ao estrondo de um coração verde.

poema do acasalamento

toda a poesia
é pouca
pouca e manca
para traduzir nossas viagens

todas as vitrines
são bocas que me chamam
como se o sonho
nos abrisse passagem

todos os sinos são roucos
roucos e tímidos
para celebrar tão nobre encantamento

os mares não bastam
para afogar os nossos ritos
montanhas são párias
a contemplar nossos momentos

encontrei suas tranças
arremessadas ao vento
traziam purpurinas de estrelas
e um cheiro de sachê
de moça carente

fugiam mansas do meu alcance
e, de vez em quando, se escondiam
numa dessas ruas estreitas do tempo

mas toa alquimia não é tanta
para decifrar meus olhos de labirinto
nem todos os santos
são suficientemente santos
para purificar o que sinto

e bailam as tranças
aos olhos de um menino que canta
e nascem as flores do acasalamento.

eclipse

como um lindo sonho
que me foge na tormenta
ou um estranho aceno
que me espanta
te perco a cada dia
como perdesse uma santa
de meias palavras sou cria
de tolas verdades sou pança
escureço a cada lua
amarrado em tuas ancas
invisível dança.

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

ateliê

o céu partiu-se em mim
espalhou centelhas
no asfalto dos desejos
e eu
:
um astro menor
sem luz
nem firmamento
frágil como um lírio
ou um milhão de borboletas
sou quadro de gogh
pintado em cores lentas.

kriptonita

insustentável
essa vontade de morrer em teus olhos
quero o silêncio milenar de uma esfinge
que me fulmina
pelo deserto negro de tuas pupilas

e me leve aonde a fantasia nos mereça
para além do tempo nos remeta
numa ilha qualquer de estrelas nos esqueça

quero a desordem de teus cabelos
subvertendo um belo coração
de ritmo tão pobre
em mim, o seu ópio desgoverno

ah!
que corra você em minhas veias
e me alimente voluptuosa
que invada meu corpo
e sacuda minha alma
e me ame com calma

ah!
esse imã de infinito
que me arrasta ao colo da menina
de tão frágil, rainha
de tão forte, tão minha
de tão nua, poderosa
de tão longe, kriptonita.

nomes

que venham as palavras todas uma a uma cumprimentar o meu querer mas que venham a n á r k i k a s sem sintaxe nem gramátiknuas     c a n s a d a s      ávidas de ser algumas mortas sem graça outras velhas demodées o colo e os seios lhes darei sou ama de sentidos para tantos pálidos rebentos perdidos carentes na atlântida dos olhares vazios na bermuda dos signos insanos na silenciosa dança dos amantes.

cidade

na esteira diurna
em que carregas
tantos rostos
tantas mechas
observo a espada do crepúsculo
tua litúrgica madrugada
a sufocar a enorme boca atlântica dos famintos.

happy end II

não
que não tenha hora marcada
a maldita navalha
aceito,
em qualquer instante,
a ponta afiada
que dispara
de tuas sobrancelhas

assim,
com teu brilho bárbaro,
minha ferida será ainda
o substrato para tuas pupilas

para em outro tempo,
quem sabe,
aterrisarres em mim.

presságio II

foi como se
o meu caminho se desviasse
e não sentisse
os meus próprios passos

e do espanto não pousasse jamais
em meus castelos de areia
um arrepio de cimento
me esfriasse
e um dessassossego imenso
não me largasse.

eye

olhos não são repolhos sobre a mesa:
o olhar é síncope.